No ano passado, meus pais (profissionais ultra-bem-sucedidos que decidiram reduzir o ritmo em tempo de aproveitar a vida com alegria e saúde) tomaram uma decisão surpreendente para um casal – muito enxuto, diga-se – de mais de 60 anos: alugaram o apartamento em um bairro nobre de São Paulo a um parente, enfiaram algumas peças de roupa na mala e embarcaram para Barcelona, onde meu irmão e eu moramos, para uma espécie de ano sabático.
Aqui na capital catalã, os dois alugaram um apartamento agradabilíssimo no bairro modernista do Eixample (mas com um terço do tamanho e um vigésimo do conforto do de São Paulo), com direito a limpeza de apenas algumas horas, uma vez por semana. Como nunca cozinharam para si mesmos, saíam todos os dias para almoçar e/ou jantar. Com tempo de sobra, devoraram o calendário cultural da cidade: shows, peças de teatro, cinema e ópera quase diariamente. Também viajaram um pouco pela Espanha e a Europa. E tudo isso, muitas vezes, na companhia de filhos, genro, nora e amigos, a quem proporcionaram incontáveis jantares regados a vinhos.
Com o passar de
alguns meses, meus pais fizeram uma constatação que beirava o
inacreditável: estavam gastando muito menos mensalmente para viver aqui
do que gastavam no Brasil. Sendo que em São Paulo saíam para comer fora
ou para algum programa cultural só de vez em quando (por causa do
trânsito, dos problemas de segurança, etc), moravam em apartamento
próprio e quase nunca viajavam.
Milagre? Não. O que
acontece é que, ao contrário do que fazem a maioria dos pais, eles
resolveram experimentar o modelo de vida dos filhos em benefício
próprio. “Quero uma vida mais simples como a sua”, me disse um dia a
minha mãe. Isso, nesse caso, significou deixar de lado o altíssimo
padrão de vida de classe média alta paulistana para adotar, como
“estagiários”, o padrão de vida – mais austero e justo – da classe média
europeia, da qual eu e meu irmão fazemos parte hoje em dia (eu há dez
anos e ele, quatro). O dinheiro que “sobrou” aplicaram em coisas
prazerosas e gratificantes.
Do outro lado do
Atlântico, a coisa é bem diferente. A classe média europeia não está
acostumada com a moleza. Toda pessoa normal que se preze esfria a
barriga no tanque e a esquenta no fogão, caminha até a padaria para
comprar o seu próprio pão e enche o tanque de gasolina com as próprias
mãos. É o preço que se paga por conviver com algo totalmente
desconhecido no nosso país: a ausência do absurdo abismo social e,
portanto, da mão de obra barata e disponível para qualquer necessidade
do dia a dia.
Traduzindo essa
teoria na experiência vivida por meus pais, eles reaprenderam (uma vez
que nenhum deles vem de família rica, muito pelo contrário) a dar uma
limpada na casa nos intervalos do dia da faxina, a usar o transporte
público e as próprias pernas, a lavar a própria roupa, a não ter carro
(e manobrista, e garagem, e seguro), enfim, a levar uma vida mais
“sustentável”. Não doeu nada.
Uma vez de volta ao
Brasil, eles simplificaram a estrutura que os cercava, cortaram uma
lista enorme de itens supérfluos, reduziram assim os custos fixos e,
mais leves, tornaram-se mais portáteis (este ano, por exemplo, passaram
mais três meses por aqui, num apê ainda mais simples).
Por que estou
contando isso a vocês? Porque o resultado desse experimento quase
científico feito pelos pais é a prova concreta de uma teoria que defendo
em muitas conversas com amigos brasileiros: o nababesco padrão de vida
almejado por parte da classe média alta brasileira (que um europeu
relutaria em adotar até por uma questão de princípios) acaba gerando
stress, amarras e muita complicação como efeitos colaterais. E isso sem
falar na questão moral e social da coisa.
Babás, empregadas,
carro extra em São Paulo para o dia do rodízio (essa é de lascar!), casa
na praia, móveis caríssimos e roupas de marca podem ser o sonho de
qualquer um, claro (não é o meu, mas quem sou eu para discutir?). Só
que, mesmo em quem se delicia com essas coisas, a obrigação auto-imposta
de manter tudo isso – e administrar essa estrutura que acaba se
tornando cada vez maior e complexa – acaba fazendo com que o conforto se
transforme em escravidão sem que a “vítima” se dê conta disso. E tem
muita gente que aceita qualquer contingência num emprego malfadado,
apenas para não perder as mordomias da vida.
Alguns amigos
paulistanos não se conformam com a quantidade de viagens que faço por
ano (no último ano foram quatro meses – graças também, é claro, à minha
vida de freelancer). “Você está milionária?”, me perguntam eles, que têm
sofás (em L, óbvio) comprados na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, TV
LED último modelo e o carro do ano (enquanto mal têm tempo de usufruir
tudo isso, de tanto que ralam para manter o padrão).
É muito mais simples
do que parece. Limpo o meu próprio banheiro, não estou nem aí para
roupas de marca e tenho algumas manchas no meu sofá baratex. Antes isso
do que a escravidão de um padrão de vida que não traz felicidade. Ou,
pelo menos, não a minha. Essa foi a maior lição que aprendi com os
europeus — que viajam mais do que ninguém, são mestres na arte do savoir
vivre e sabem muito bem como pilotar um fogão e uma vassoura.
PS: Não estou
pregando a morte das empregadas domésticas – que precisam do emprego no
Brasil –, a queima dos sofás em L e nem achando que o “modelo frugal
europeu” funciona para todo mundo como receita de felicidade. Antes que
alguém me acuse de tomar o comportamento de uma parcela da classe média
alta paulistana como uma generalização sobre a sociedade brasileira,
digo logo que, sim, esse texto se aplica ao pé da letra para um público
bem específico. Também entendo perfeitamente que a vida não é tão “boa”
para todos no Brasil, e que o “problema” que levanto aqui pode até soar
ridículo para alguns – por ser menor. Minha intenção, com esse texto, é
apenas tentar mostrar que a vida sempre pode ser menos complicada e mais
racional do que imaginam as elites mal-acostumadas no Brasil.
* Paulistana, 35 anos, mora em Barcelona há uma década.
* Paulistana, 35 anos, mora em Barcelona há uma década.